Constituição à brasileira
Vinte anos. Congresso superlotado, emoção quase palpável, o
presidente da Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, 71, muito à
vontade, no auge da glória, expressão de felicidade no rosto altivo,
termina vigoroso discurso. De pé, ergue os longos braços para exibir um
livro de 292 páginas, capa verde-amarela, 245 artigos e 70 disposições
transitórias, que chama de Constituição Cidadã, porque acha que
recuperará como cidadãos milhões de brasileiros. "Mudar para vencer!
Muda, Brasil!", grita entusiasmado.
Foram 20 meses de
muito poder, palco iluminado, pressão, choques, trabalho extenuante,
abertura à participação popular. Esperava muito da Carta, seu maior
feito. E também a Presidência da República.
De
outubro a dezembro de 1988, em ambiente nacional de sinistrose e medo de
hiperinflação, funcionou o chamado "pacto social", reunindo governo,
empresários, trabalhadores e, no fim, políticos. Espaço de diálogo e
negociação. Deu certo. Os entendimentos foram essenciais para amenizar o
impacto inicial da Constituição.
A convocação da
Assembléia Nacional Constituinte ganhara força na reta final da
ditadura. Tancredo Neves, candidato a presidente, prometera fazê-lo.
Hábil, usava o compromisso para se desvencilhar de questões embaraçosas.
Seu eventual mandato seria de quatro, cinco ou seis anos? "Será o que a
Constituinte fixar." Um dia, na intimidade, perguntei: "Seis anos,
doutor Tancredo?". "Muito", respondeu. "Quatro?". "Pouco."
Indispensável, mas também fonte de instabilidade, a Constituinte podia
quase tudo. Quando foi instalada, fevereiro de 1987, o presidente Sarney
me disse que, apesar de tema conjuntural, a duração de seu mandato
ocuparia o centro das atenções. Tinha certeza de que iam politizar o
assunto. Coisas da política, do poder e da paixão. Havia forte enxame de
moscas azuis no Congresso Nacional, muitos presidenciáveis. Difícil
governar com inflação alta, economia em baixa e um suprapoder em cima.
No Palácio do Planalto, inesgotável romaria de parlamentares,
parte de nariz empinado, salto 15 ou mais, exalando poder e importância.
A questão do mandato realmente pegou fogo. Em 15/11/1987, um
domingo, a Comissão de Sistematização votou quatro anos para Sarney. A
terra tremeu no Plano Piloto. Final da manhã, telefonema do general Ivan
de Souza Mendes, ministro-chefe do SNI. Está ansioso e preocupado. Pede
que eu vá depressa ao Palácio da Alvorada, residência presidencial.
Meia hora depois, encontro lá o presidente Sarney, os ministros
militares e muitos civis. Dia tenso, perigoso. Grande atividade,
agitação, nervosismo. O presidente ouvia muito e falava pouco. Agüentou
firme. Não arredou pé do compromisso democrático. Começo da noite, li
nota à imprensa, em que ele reafirmava o respeito a todas as decisões
que viessem a ser adotadas pela Constituinte. Inclusive eleições em
1988.
No final do processo, acirrada disputa da
duração do mandato e do sistema de governo. Deu presidencialismo e cinco
anos. Mas a alma parlamentarista ficou, como mostra, por exemplo, o
instituto das medidas provisórias, inspirado no parlamentarismo
italiano. Abundante remessa de matérias polêmicas para a legislação
infraconstitucional permitiu aprovar o texto definitivo em 23/9/1988.
Conforme pesquisa do jurista Saulo Ramos, precisava de 289 leis de
concreção, sendo 41 complementares.
A nova Carta
serviu bem ao país? Críticos dizem que é irrealista, rica em
contradições e ambigüidades, economicamente desequilibrada e anacrônica,
excessiva em matérias e detalhamentos, mas repleta de lacunas. Que
provocou o maior desastre fiscal da história brasileira, induzindo a
disparada do déficit público, da dívida interna e da carga tributária.
Afirmam que as imperfeições sufocaram o Congresso. Citam o
advento de 56 emendas, 69 leis complementares, além de milhares de
propostas de emenda rejeitadas ou em tramitação.
Também exuberante demanda de interpretações ao STF e implacável bombardeio de medidas provisórias.
Aspas para Sarney: "Logo, logo se viu que a Constituição Cidadã
criava mais direitos que obrigações, mais despesas que fontes de
recursos. Um dos efeitos danosos foi a necessidade de emendá-la
continuamente. A cada emenda, o governo se torna refém da parte menos
nobre do Congresso."
Ela fez bem à nação?
Politicamente, sim. Completou a transição, é profundamente democrática,
assegurou o Estado de Direito. Tem muitas virtudes. A mais abrangente de
todas, trouxe avanços notáveis em campos como o dos direitos e das
garantias individuais, liberdades públicas, meio ambiente,
fortalecimento do Ministério Público, regras de administração pública,
planejamento e Orçamento, nas cláusulas pétreas.
Seu coração, feito de democracia, de cidadania e de esperança, não perdeu a identidade.
(Ronaldo Costa Couto. Folha de São Paulo, 7 de outubro de 2008.)
"Que provocou o maior desastre fiscal da história brasileira, induzindo a disparada do déficit público, da dívida interna e da carga tributária."
No trecho acima, em relação às ocorrências de complemento nominal, é correto afirmar que há: